Wednesday 14 March 2007

Viajar Sem Sair do Lugar


Do canto de um quarto escuro vem o som. Notas tocadas em sequências de tamanha harmonia, que nem melodia, que nos embala e nos transporta pra longe da imensidão do negro que me assusta…

Levitamos aos poucos e deixamo-nos ir como se cada nota, suavemente tocada, nos desse o impulso pra voar, viajar sem sair do lugar.

Subitamente, estou no centro da praça ampla, em meados de Março, apanhando banhos daqueles primeiros raios de sol que nos relembram o cheiro característico do Verão. Corre uma brisa que me despenteia os cabelos, fá-los balançar, estou perto do mar. E curiosamente falha o cheiro, falta a maresia que vejo estampada em cada canto da praça, no rosto dos velhinhos sentados em fila e em silêncio, abrigados por debaixo dos ramos de uma árvore que não consigo identificar, uma árvore milenar.

Um deles ergue e segura nos lábios, de vez em quando, um cigarro quase que interminável. Está ali e está tão longe e eu estou fixa nele. É o olhar, a postura cansada dos anos vividos no mar onde ainda deve estar, de viagem em viagem e com tanto pra me contar. O olhar parece fixo na linha do horizonte como quem anda em alto mar procurando terra onde poisar; olhar tão abstraído no tempo real e parece mesmo ignorar as paredes caiadas de branco das casas que rodeiam a praça. Ele vê além delas.

Os outros estão apenas saudosos de tudo o que foram, de tudo o que foi. Têm tanto para contar e tanto para falar e, no entanto, o silêncio parece ser-lhes suficiente. A companhia inerte uns dos outros dá-me uma sensação de que nada lhes faria sentido de outra forma; o passado se assim não fosse, então o que teria sido.

E o tempo vai passando, de hora em hora, e pouco neste cenário muda. Ouve-se de vez em quando a ilustração da nostalgia quando alguém diz em jeito de recordação “tempos difíceis… bons tempos!”.

Bons tempos… que estranha descrição para um passado triste que vivemos. Mas que tanto nos revela acerca de nós. Será pela simplicidade de épocas. Será que com o passar na vida nos tornamos exigentes ao ponto de nada ser o suficiente para nos preencher, como aqueles tempos simples de sofrer. Será que nos tornamos cínicos ao ponto de nos recusarmos a reconhecer que não fomos felizes, que não eram tempos felizes. Parece‑me ilógica a nostalgia que a dificuldade de viver causa em nós. Será meramente saudade dos tempos árduos que passaram que nos levam a usar tal descrição. Será que é a luta diária que nos traz o sentido de viver. Será que sou eu tão pequena que não consiga entender.

De repente ganho mobilidade. Dou uns passos em direcção ao pontão. A imensidão das águas calmas invade-me de tal forma, tal é a leveza do ar que me liberta por momentos de todas as sensações. A música continua a soar no fundo da minha mente. Estou vazia de tudo e isso confunde, desconcerta-me porque não consigo respirar sem sentir. As imagens relampejam perante mim e não as fixo. Porquê? Se tudo o que sou se espelha através das minhas recordações, não posso perder-me agora deixando-as ir. Tudo o que reconheço é através das coisas que vivi e senti e disse a dada altura da vida. E o que será de mim sem tudo isso? Mas está tudo no redemoinho das ondas à beira mar como que uma metáfora para aquilo que tem sido a minha vida. Tudo confuso, tudo incompleto, quase tudo perdido.

Perdi-me a mim própria? Tudo vai e tudo volta, rodopia e se dissipa mesmo perante mim. E eis que então entendo o olhar fixo do homem do mar. Ele procura o conforto do conhecido, ele procura reviver tudo o que fez sentir-se vivo, sentir-se feliz. Será que os tempos difíceis são os que nos fazem sentir vivos. Será que são os que nos dão o ímpeto para ultrapassar qualquer dificuldade.

Mas nada que faça, nada que viva, nada que diga será para sempre. No segundo seguinte tudo é já passado. E a dificuldade do passado de que ele sente falta será a minha dificuldade do futuro, será a luta por permanecer em cada momento, a insistência em reter o que julgo conhecer e que é tão desconhecido. E será que faço algum sentido?

Tenho medo do desconhecido, e eles também. Só que idade permite-lhes descansar recordando apenas, a idade dá-lhes a segurança de que pouco mais têm a conhecer, a idade deu-lhes a certeza de que não há nada a temer no viver. A idade arrasta consigo a esperteza de perceber que o truque de viver é aprender a não temer o que pode acontecer.

E consigo ainda ouvir a música; já tem textura. A sala continua escura e eu continuo insegura. Assusta-me o que tenho pela frente. Ver o que há para ver, sentir, perder, viver… é a nossa fatídica sina. Uma fatalidade de coisas boas e más que nos ensinam a ser quem somos. E eu tenho ainda tempo para aprender e reter além daquilo que me faz sofrer.

E ele permanece a viajar, com o olhar fixo no mar e sem sair do lugar.

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